À Deriva




Respiro
E viaja o ar pela garganta
No seu movimento cíclico —
Vaivém no centro do crânio.

Respiro
E no pêndulo do peito
Dentro fora, dentro fora —
Hesita-me a vida por instantes.

Inspiro
E
Penso
Se bastará este passo inato
Para tornar a carne viva
Humana e pessoal…

Expiro
E
Esqueço
Este intervalo da existência
Da dúvida que escurece o dia —
Claramente, limito-me a viver

E respiro.


Para a próxima fazes melhor

Conseguira terminar o desenho mesmo a tempo do concurso. “Casas da nossa aldeia” lançava o mote da competição, o que delimitava a sua fértil imaginação à imagem de quadrados habitacionais. A irmã ajudara-a a centrar os vários elementos na folha branca e a escolher as cores que mais animavam o cinzento das paredes. “Faço fumo a sair da chaminé?” — “Não, já não estamos no Inverno… Faz antes uns pássaros e um sol a sorrir.”
Juntou-se às outras meninas de saia rodada e tranças compridas. “Mostra lá o teu… Tão giro!” — “E o teu? Também é bonito! Gosto do sol!” — “Já viste o da Maria? Está tão feio…” E assim conversavam, na sua união de meninas amigas, incluindo as bonitas, excluindo as feias.
Chegara a hora de expor os desenhos. A sala de aula transformara-se num imenso estendal, com cordéis a saltitar de parede em parede. A professora estava à porta, cumprimentando as crianças e elogiando-as com olhos cor-de-mel. Pegou num saco farto de molas e pendurou os desenhos ao longo das várias linhas. Pequenos lençóis coloridos a dançar numa tarde de Primavera.
O nervoso miudinho batia cada vez com mais força dentro da sala, tornando-se quase ensurdecedor quando duas senhoras claras entraram e começaram a observar cada um dos trabalhos. Finalizada a primeira volta, seleccionaram alguns dos desenhos. “Olha, olha, escolheram o meu!” — “E o meu também!” — “Olha, levaram o meu!”
De pescoço esticado e tranças caídas, as meninas abraçavam-se e davam as mãos aliviadas. “E o meu? Não escolheram o meu porquê?”, murmurou a menina do desenho da casa cinzenta com pássaros negros. Aflita, foi perguntar à professora porque é que o seu trabalho não tinha sido escolhido. A professora pegou-lhe na mão: “Mostra-me lá o teu desenho.”
Aproximaram-se da sua casa granítica de flores azuis e sol sorridente. “Está muito bonito, mas não foi escolhido… Não fiques triste, para a próxima fazes melhor.” As senhoras claras chamaram a professora para as ajudar a eleger o melhor trabalho.
A menina ficou para trás, junto do desenho esquecido. Talvez tenha chorado um pouco. As amigas olharam-na de lado, do alto das suas saias, e seguiram em frente, ansiosas por saber a qual das três caberia a vitória. Sozinha, a menina olhava para os pássaros negros que se reflectiam nos seus olhos, tocando as flores azuis com os dedos que entretanto murcharam um pouco. O sol já não estava a sorrir.

Arquipélago


Nesta margem de escrita

E aqui nos encontramos
Aqui nos imaginamos e formamos

Nos deformamos
Aqui, nesta margem de escrita

Aqui vos imagino —
Gentis e generosos
Ávidos de palavras e curtos sons

Aqui me imaginais vós —
Convulsa e sensual
A rima limada a delinear-me a anca

Daqui vemos o mundo lá em baixo
Escasso e desordenado

Aqui somos um mundo mais acima
Tu e eu

Aqui somos um mundo só nosso
Nesta margem de escrita