Passei grande parte da minha infância no sótão. Havia algo naquele espaço que me prendia ali tardes inteiras: seria a luz morna que pingava suavemente entre as telhas, o vento raspando música nas vigas, talvez o pó que cobria de esquecimento baús e quadros rejeitados. Uma jarra partida. Um xaile rasgado. Era neste cenário absurdo que eu dava vida às fadas e aos vampiros do meu faz-de-conta de criança, elevando o sótão dos meus pais à categoria de palco universal.
Certo dia, enquanto encarnava uma bruxa escarlate voadora, saltando de caixa em caixa com uma manta vermelha amarrada à volta do pescoço, tropecei num saco cheio de cacos. Interrompi de imediato o meu aceso e demoníaco voo.
Dentro do saco, estavam inúmeras lascas de mármore branco, perdidas na sua alvura glacial. Observei meticulosamente cada um dos pedaços, com o mesmo entusiasmo com que uma arqueóloga analisa fragmentos de um vaso fenício. Cada pedaço era macio e enigmático, encerrando em si um parágrafo de uma história por contar: uma crina ondulada, uma narina suspensa, um casco em riste.
Concluí por isso que aqueles cacos tinham outrora pertencido à figura de um cavalo. A partir desse momento, encetei a minha missão obsessiva de restituir todos aqueles estilhaços à sua unidade original. Todavia, os pedaços não se deixavam encaixar; sobravam sempre cacos obtusos, o que me fazia reiniciar a minha malograda demanda vezes sem conta.
Os anos passaram. A luz continuou a tingir as telhas de amarelo-alperce, mas o sótão deixou de ser o meu cenário predilecto para dramas e tragédias.
Há pouco tempo, durante um almoço domingueiro na casa de uma tia, reparei numa estatueta de dois cavalos brancos, em sereno repouso sobre uma estante, entre enciclopédias e pratos chineses. Quando o almoço terminou, aproximei-me da estatueta e avaliei-a atentamente. A finura dos traços, a alvura das formas e a suavidade do seu toque eram em tudo iguais às do meu enigmático cavalo do sótão. Descobri finalmente a razão que impelia aqueles cacos a professarem com tanta teimosia a sua fragmentação. Obviamente, as lascas de mármore não se deixavam reunir porque não pertenciam apenas a um cavalo, mas a dois...
No entanto, estes dois cavalos em consonância estavam muito longe da beleza milenar que eu tinha imaginado para a minha figura despedaçada. Mesmo quebrado e disforme, o meu cavalo branco continuava a ser mais livre e mais perfeito do que aquelas duas formas tão óbvias.
Certo dia, enquanto encarnava uma bruxa escarlate voadora, saltando de caixa em caixa com uma manta vermelha amarrada à volta do pescoço, tropecei num saco cheio de cacos. Interrompi de imediato o meu aceso e demoníaco voo.
Dentro do saco, estavam inúmeras lascas de mármore branco, perdidas na sua alvura glacial. Observei meticulosamente cada um dos pedaços, com o mesmo entusiasmo com que uma arqueóloga analisa fragmentos de um vaso fenício. Cada pedaço era macio e enigmático, encerrando em si um parágrafo de uma história por contar: uma crina ondulada, uma narina suspensa, um casco em riste.
Concluí por isso que aqueles cacos tinham outrora pertencido à figura de um cavalo. A partir desse momento, encetei a minha missão obsessiva de restituir todos aqueles estilhaços à sua unidade original. Todavia, os pedaços não se deixavam encaixar; sobravam sempre cacos obtusos, o que me fazia reiniciar a minha malograda demanda vezes sem conta.
Os anos passaram. A luz continuou a tingir as telhas de amarelo-alperce, mas o sótão deixou de ser o meu cenário predilecto para dramas e tragédias.
Há pouco tempo, durante um almoço domingueiro na casa de uma tia, reparei numa estatueta de dois cavalos brancos, em sereno repouso sobre uma estante, entre enciclopédias e pratos chineses. Quando o almoço terminou, aproximei-me da estatueta e avaliei-a atentamente. A finura dos traços, a alvura das formas e a suavidade do seu toque eram em tudo iguais às do meu enigmático cavalo do sótão. Descobri finalmente a razão que impelia aqueles cacos a professarem com tanta teimosia a sua fragmentação. Obviamente, as lascas de mármore não se deixavam reunir porque não pertenciam apenas a um cavalo, mas a dois...
No entanto, estes dois cavalos em consonância estavam muito longe da beleza milenar que eu tinha imaginado para a minha figura despedaçada. Mesmo quebrado e disforme, o meu cavalo branco continuava a ser mais livre e mais perfeito do que aquelas duas formas tão óbvias.
2 comentários:
a primeira frase deste texto arregalou-me logo os olhos. os sótãos têm alguma coisa especial só pelo facto de serem sótãos. o da minha casa, por exemplo, até nem tem aspecto de sótão cheio de tralha antiga, parece uma sala normal, mas eu adoro lá estar, tem uma atmosfera diferente da do resto da casa.
quanto aos cavalinhos, ahah, isso é bonito, principalmente porque a tua tia também tem uns iguais, isso cheira-me a prenda de natal de uma tia-avó igual para toda a gente. :p
Sim, o sótão é sempre aquele "andar de cima" que nos permite ter uma perspectiva diferente sobre as coisas.
Em relação aos cavalinhos, a lógica foi mais "Olha que giro! Também quero!" Pfff, irmãs...
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