Nocturno II

Por maceradas equimoses
subimos a pulso a aridez da pele
(um do outro às vezes a minha)
há-de haver atrás dos ombros
um fontanário curvado em
porta que eu possa abrir
e entrar
navegar-te por dentro
e alisar as tuas águas
antárcticas ------ felinas
(esquecemos as âncoras
hoje
talvez este ano?



"A infância é um país mágico donde somos todos expatriados pela percepção da morte, ou da crueldade."

Maria Velho da Costa, Myra (Lisboa: Assírio & Alvim, 2008) 134.
Foto: R. Rogers

What will suffice *

Quase sempre me falta o tempo para escrever menos. Digo, reter o necessário da invasão babélica que sucede cada vez que se abrem as comportas da semântica, brava e enraivecida galgando as margens.
As gentes de hoje não se agradam do excesso. Urge por isso despir a palavra num isolamento desadjectivado, recuperar-lhe a nudez asséptica e minimal.
Custa-me no entanto apurar o vocábulo dessa forma, limar assim os rochedos que se vão formando atrás da língua.
Falta-me o tempo para escrever menos, mais certo, arrumado, contido. Porventura encontrar o que (me? nos?) é suficiente.
Falta-me o tempo, e por vezes a coragem.
Porque para isto é preciso ter coragem, é necessário ter mão rija para se conseguir viver no susto constante das palavras a saírem-nos de debaixo dos pés e a encadearem-se à nossa frente, tenebrosas e fluidas.

*
Chega-se o fim das horas.
É tempo de me recuperar
ao largo do mar febril
e deixar assomar os dedos
à janela da magnética inquietude
fazendo-me de desfazer-me re-
fazendo-me
na maresia amniótica
cevada de tinta a descrer a crónica
breve desta paragem pantomímica.

Alçapão (sem porta)

São tantas as vezes que a desarrumação do sótão me cai em cima (como caía o céu sobre a cabeça dos gauleses), que eventualmente me renderei à evidência caótica das lembranças. Avessa à sisífica catalogação de gentes e de cheiros, passarei a ser velha louca desterrada entre livros rotos e jornais adiados, o mijo dos ratos a adoecer-me o ar de leptospirose e eu doente, sentada numa poltrona rarefeita de molas e de hortênsias, calada a desfiar um rosário de cacos.
Vivo no ontem, sim, pois do hoje só recebo uma pouca ilusão de avanço, em tudo insuficiente à minha expansão miocárdica.

Sarcophagus for the mistranslators



Sarcophagus for the slave of writing crying help in all

languages for wild sound for the
twins of frozen speech





O que mais me assusta na doença é a consciência aguda que nos faz ter do corpo (da carne, matéria, víscera), como nos desapodera de um terreno que pensávamos ser nosso e inteiro.
Sem licença nem aviso, a doença empurra-nos para fora do corpo, e fica ali, entranhada no subsolo, a crocitar por entre os corvos nos algares da epiderme.
(Re)formamo-nos pois no exterior: voz, modulação, prisma. Somos satélites, errando uma órbita forçada rodando longe, perto, à volta de uma terra que não é nossa mas onde ainda queremos ser. Nós.
E rodamos.
Rodamos, rodamos, reflectindo ora a crosta em sofrimento rubro, ora o nada negro de fora cheio de nada. Nada negro, nada negro, rubro.
Rodamos, rodamos, compadecidos daquela pequenez absorvida pela opacidade cósmica.
Rodamos, rodamos, observando, da nossa rota oblíqua, o doloroso espasmo da matéria a querer ser redonda perfeição.
Rodamos, à espera que o magma se acerte na sua convulsão gravítica, alinhando carne, pedra, e fuligem. Esperamos pela sutura, pela força da cicatrização que nos deixe regressar ao leito das falésias sísmicas. Ou à serenidade das montanhas envelhecidas.

O regresso (a haver) traz consigo o alívio da vida em génese, a reaproximação ao início dos cheiros como quando se volta à casa onde sempre se viveu desde a criação de todos os mundos.

Das casas

novas que são ruínas
de boca aberta às tempestades
arrepiadas pelo vidro quebrando
as janelas sem osso na mão
(ninho pródigo de odisseias e
de) casas
velhas paredes que são braços
alicerces
afundados na cintura
quadros
pendurados atrás da íris
— sento-me no joelho
à lareira do cabelo
desfiando
o novelo das palavras
numa manta de retalhos
envidraçada nas sílabas do telhado.


seria porventura o excesso
das intricadas mariposas
ventilando de quando em vez
um suspiro sonho evaporado
por entre as trancas das fronteiras
fechadas pelo ar grosso enferrujado
desse espinho atravessando
as asas brancas por encetar

Foto: Robert ParkeHarrison

Mental Note # 12

So long...



How still the spiderless city.


Sonia Sanchez, "Philadelphia: Spring, 1985",Shake Loose My Skin (Boston: Beacon Press, 1999) 61.