Procuro hoje a redenção no espelho
lembrando
como se cauterizam certas feridas
não pela ordem de sangue e pele
mas pela força da matriz dorsal
infiltrada na alvenaria epidérmica

escrevo os olhos a lápis vermelho
carregado firme para afogar lágrimas
e trinco de voz a maçã preta
preta espada que espanta o sono
ácida e sã como a luz das tempestades

talvez um dia eu soubesse ser
toda a elegância do matrimónio
(tão privada e marsupial)
mas chama-me o canto das aves frias
num bosque insano sem flores azuis

não me picam mais agulhas:
este há-de ser o meu reino fértil
por onde deslizo inteira contra o vento
dançando a valsa do nevoeiro
– louca – torta – fricativa.
Tenho o furor de amar. Meu coração é louco.
O quando e o onde, e a quem, importa pouco.
Que um clarão de beleza, virtude, ou pujança
Brilhe, e ele se precipita, e voa, e se lança.
E, enquanto a posse dura, de mil beijos cobre
O objecto ou o ser que o seu entusiasmo dobre
De um valor que não tem. Quando a ilusão se encolhe,
Regressa triste e só, mas fiel, como quem escolhe
Deixar de si aos outros, ele, alguma cousa
De sangue ou carne. Mas não morre, nem repousa,
E o tédio o faz partir para a terra das Quimeras,
De onde nada trará, só lágrimas severas
Que saboreará. Desesperos de um instante,
E logo se reembarca. Teimoso segue avante,
Sem sequer se dar conta que na infinidade,
Navegador casmurro, há sempre um escolho que há-de
Fazê-lo naufragar antes que aporte à margem
A que apontara o rumo da perdida viagem.
Mas trampolim ele faz do escolho, e logo nada
Para a praia. Lá está. Mas estranha vezada
Será que avidamente não corra e percorra,
Desde que o sol é nado até que o poente morra,
De lés a lés o promontório inteiro.
E nada! Árvore ou erva ou fonte no braseiro,
Mas fome só, e a sede, e o sol como metal,
E nem vestígio humano, um coração igual!
A ele não -- jamais há-de encontrar alguém --
Mas coração humano, um coração também,
Que esteja vivo, ainda que falso, palpitante!
E espera, sem perder a força latejante
Que a febre lhe sustenta, e que o amor lhe ganhe,
Que um barco o mastro erecto ao longe lhe desenhe,
A que faça sinais, e venha, e que o recolha:
Assim ele raciocina. E quem se fia? Olha!...
Apóstolo tão estranho, um dia há-de acabar.
Se a morte o deixa sempre, aos outros quer matar.
Os mortos, os seus mortos, mais morto ele está!
Uma fibra qualquer, sempre nas tumbas há,
Do seu fogoso ser, que aí vive docemente.
Aos mortos ama como uma ave o ninho quente.
Lembrá-los -- almofada em que adormece e vai
Sonhar com eles, vê-los e falar-lhes. Sai,
Ainda embebido deles, para uma aventura horrenda.
Tenho o furor de amar. E então? Não tenho emenda.

Paul Verlaine, "Lucien Létinois - V", Poemas de Amor e de Abandono (Coimbra: A Mar Arte, 1999).
Livro achado perdido, mas felizmente encontrado entre enfeites de Natal.

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Such quiet days disclose much infinity




You fluctuate in an artful body
You try to imitate the world’s glory
Art begins with a lie
That’s the story, sharp speck in the eye.

Anne Waldman, "The Lie"
Lá fora caem trombetas de água irisada pelo vento;
talvez o fogo venha a seguir, depois o fumo e o enxofre;
não sei ainda, mas a terra pareceu tremer
entretanto, talvez de frio ou solidão.

Lá fora o mundo avança e acaba
e tu aqui sentada, à cerejeira desta mesa
que sob um sol murcho vai murchando
murchando —
os olhos um arado sobre a noite.

Crias por isso uma fórmula de sentido:
subtrais à altura das ondas a velocidade do vento,
multiplicas as intempéries pela nidificação interrompida,
mas sobra-te sempre a viuvez das casas em colapso
gemendo água pelos alvéolos das paredes.

Esperas por isso que o mar devolva
a mensagem vidrada que lhe ofereceste
naquele dia luzidio de tranças pretas.

Talvez venhas a ser Eva sem Adão
se a espuma do mar te lembrar
da nudez inocente caída sobre as águas,
se regressares à ausência dos nomes
sussurrados antes pela carícia dos elementos:
ruach elohim