"Black Iris", Georgia O'Keeffe



Podia lembrar-te
e sangrar um poema
uma ou outra epopeia —
talvez um lírio roxo

Podia, mas prefiro
a minha planície desviada
do teu relevo fantomático
onde vertigens fricativas
se codificam em silêncio


Sidewalk Wisdom



Library Way, NY (2009)



Mental Note # 3

La femme de trente ans




Amarás

o meu nariz
brilhante
as minhas estrias
os meus pontos pretos
os meus textos
os meus achaques
e as minhas manias
e as minhas gatas
de solteirona
ou não me amarás.



Adília Lopes, "La femme de trente ans", Quem quer Casar com a Poetisa? (Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2001) 118.
Foto: Edoardo Pasero



(Só por este poema, vale a pena abraçar uma idade tão plural e redondinha...)






Tots som llavor d'oblit.
El celistre que corca
quaderns, carpetes, llibres,
ho amara tot de sal.
Ser feliç és un plagi,
escriure un deure amarg.
No vivim, les paraules
ens desviuen i ens fan,
cercadors enfebrits
de bellesa, perduts
presoners d'una pàgina.
Naufragam en gargots.
Ponç Pons, "Tristia"

We are all seed of oblivion.
The sharp draught that consumes
notes, folders and books
steeps everything in salt.
Being happy is plagiary,
writing a bitter duty.
We do not live, the words
undo us, making of us
feverish seekers
of beauty, the lost
prisoners of a page.
We are wrecked on scribbles.
("Tristia", Trad. Julie Wark )

Photo: Yale Joel

Mental Note # 2






Antecipo-me à fornalha da manhã. A perna já se desencaixou do resto do corpo, numa previsão metafísica do dia que inunda a casa e me faz sair do quarto.
O caminho pelas ruas faz-se cedo, a perna sempre a correr à minha frente, e eu atrás dela, devagar. Pesam-me as vozes e os candeeiros, agulhas erectas que me enguiçam o cabelo e afunilam o passeio. De quadrado em rectângulo atravesso os canteiros, enquanto os sinos dobram e explodem o seu cheiro a cobre sobre as janelas sonolentas.
O caminho é lento e a perna rápida, custa-me acompanhá-la naquele frenesim de salto alto sobre o cimento. O corpo anda mirrado, a carne encolhe-se todos os dias e a pele procura-me o calor dos ossos, cinzenta de solidão.
À noite, quando chego a casa, já as costas vão enrodilhadas e ambas as pernas atrasadas. Enrolo-me no lençol, e os braços puxam o resto do corpo para dentro de um búzio. Adormecer seria fácil, não fossem as casas a rosnar e os carros a cuspir sirenes…
Estendo as mãos e procuro o cheiro do linho branco. As casas sossegam, os carros são cigarras, e a janela, uma moldura quente de pinheiros mansos.

Photo: Martin Moos


We are standing on the edge...

(Please, click here)

Photo: Frank Horvat




Escrevesse eu um poema
Sobre o teu corpo feito página.
Seria a tua pele ameno papel acetinado
Sobre a minha pele, seda reposta em anca.

Na pureza da folha, caracteres privados
Em traços leves dentro, fora das margens.
Serias tu termo suave a roçar-me nos dedos,
Seria eu palavra roxa a espreita-te dos lábios.

Fosses tu o ímpeto certo,
Verso contado em heróico acento.
Seria eu livro, vale fundo em branco,
Serias tu tinta negra a brotar das fontes.

Fosse tua face triângulo perfeito
A sorver o topo das montanhas.
Fosse minha mão abrigo fechado
De pássaro em agitado repouso.

Hipnótico pêndulo,
Metáfora em chamas,
Anáfora a pulsar.

Seriam lírios a florir,
Pinheiros a sangrar —
Todo um dicionário em uníssono suspiro.

Seria meu corpo copo cheio em tuas mãos.

(Junho de 2009)





Ah, Carl, while you are not safe I am not safe, and now you're really in
the total animal soup of time —




Allen Ginsberg, "Howl" (1956)
Photo: John Loengard






Fame is a bee.
It has a song—
It has a sting—
Ah, too, it has a wing.
Photo: Stephen Alvarez




IMPORTANT


Book reading is a solitary and sedentary pursuit, and those who do are cautioned that a book should be used as an integral part of a well-rounded life, including a daily regimen of rigorous physical exercise, rewarding personal relationships, and a sensible low-fat diet. A book should not be used as a substitute or an excuse.

Garrison Keillor, The Book of Guys (New York: Penguin Books, 1993) n.p.


I like the peace in the backseat...


Viajávamos juntos, os quatro, num carro que connosco encontrava o equilíbrio em cada curva. A mão fora da janela, leve e desprendida, media a velocidade das folhas secas na estrada, bebendo avidamente o sol fértil da manhã. O ar que varria os dedos era um ar saturado de possibilidades, e de uma certeza inabalável de que iria ser sempre assim: nós os quatro dentro de um carro, a minha mão a querer voar, os cantos da boca selados com algodão doce, as minhas tranças de menina sempre certas das mãos de mãe.
Os domingos eram viagens breves e circulares, mas filmadas com um filtro de eternidade que as tornava infinitas. As cores, tão agudas. As vozes, suave seda. As nuvens, unicórnios e dragões.
Parámos um dia na berma da estrada. Mudei-me para o banco da frente, e a viagem passou a ser minha. Deixou de haver algodão doce, nuvens aladas, e a certeza das mãos de mãe.


Photo: Henryk Kaiser





Aqui, gostam de me ouvir falar. Dizem que falo bem. Então eu falo, aqui, e as pessoas olham para mim como quem olha para um pássaro exótico. Canta, pássaro, canta. Aqui, não conseguem dizer o meu nome. O último. Chamam-me “Sôres”. Que rima com dores, aí, e que quase dizer “dorido”, aqui. Canta, pássaro, canta. Aqui, faltam-me as palavras. Tantas, as minhas, as dos outros. Sinto falta do meu nome sem ser dorido, a exibir o seu hiato bem agudo, quase agressivo. Faltam-me as palavras, aqui. Ontem, vi um pássaro caído no passeio, redondo como um seixo, uma mancha vermelha no peito a queimar-lhe restos de vida. Roubou-me as palavras, o pássaro. Todos os seus contornos eram tão dolorosamente definidos, aguçados, dolorosos como o meu nome. Aqui, gostam das minhas palavras, porque não são minhas. Aqui, não sou eu. Ao lado do pássaro redondo, um cano vertia vapor sobre uma árvore, e o sol da manhã desmaiava-lhe nos ramos epifânicos. A árvore, o sol e a água abraçaram-se ali mesmo, e elevaram o pássaro um pouco acima dos telhados. Não me levaram a dor. Voa, pássaro, voa. Eu não voei, para quê voar, quando se é outra pessoa e se canta, mesmo com dores. Canta, pássaro, canta.





To "see the light" too often has meant rejecting the treasures found in darkness.



Adrienne Rich, "Resisting Amnesia", Blood, Bread, and Poetry (New York: W.W. Norton & Company, 1986) 141.

Photo:Francis Miller




My love is fix'd

I cannot range;

I love my choice

Too well to change.


(Poema pintado num bule de chá, século XVIII)

Foto: Eliot Elisofon





"... My dreams of you are always softer than you are ..."


Eileen Myles, "Sleepless"


Chegar a casa e inventar coragem para abrir a porta, para enfrentar a cama varrida pelo mesmo deserto de sempre, a secretária invadida por exércitos de livros inebriados, comandados por papéis perdidos e rascunhos na reserva, o espelho ocupado por uma face estranha, implacavelmente cortada pelos ponteiros do relógio. É esta a batalha em que todos os dias me encontro vencida, por mais que tente abrir a janela e seguir o voo afortunado dos pássaros em fuga triangular.



(As minhas respostas preferidas são: "Blame Canada", "Fire Obama" e "Fall in Love"...)

X-rayed (Liberty) Bell

Philadelphia, 2009


"Fuck you and have a nice day!"


Saltou de dentro de um grito, atravessando heroicamente a barreira metálica do "passas-não passas". Numa cacofonia de braços e muletas, alçou a perna engessada até à porta do metro e embarcou, uno e certeiro, na sua viagem marginal.
Fora do metro, um homem de blusão negro exigia ordem, pedia ao homem da perna branca que saísse e regressasse ao lado correcto, onde só papéis e cartões podem levantar cancelas. Foi então que as palavras começaram a ferver em lume forte, atiradas às janelas como bolas de chumbo quente.
“Wharya’ want?! FUCK YOU! Fuck you and have a nice day!”
As portas fecharam-se, o metro seguiu a sua marcha sibilante pelas entranhas da cidade, e o homem sentou-se no único lugar vago. Do bolso roto, tirou uma carcaça de pão seco que foi esboroando com os dedos sujos. A cabeça erguida içava-lhe o olhar acima de todos os narizes torcidos pela sua rude ilegalidade. Sentado naquele banco laranja podre, lembrava um guerreiro que, após longa invasão triunfal, ocupa o seu lugar à mesa dos justos.

The City


On a night like this –
sidewalks, slippery with saliva
windows, projecting empty silhouettes on
walls, slicing up round corners of the moon

(the full moon, the old moon,
whose colors and taste
I am yet to forget)

On a night like this –
I steer my watery body across the city
embracing every street as my own long lost river
burying bridges inside the crevices of my navel

On a night like this –
I hear the shrill cry of the city
sharp buildings penetrating its purest sky
hissing underground lizards ripping its womb

On a night like this –
the city is a blue whale with a torn mouth
its tasteless tongue, a warm bed
where I steadily rock myself to oblivion

On a night like this –
the city is my brother, my sister, my mother
licking the tears off my face while I mourn
every monthly tragedy of my unborn children



“Cross out previous address.
Use repeatedly until all spaces are utilized.”



(Epifania encontrada na face superior de um envelope de correio interno.)

Cinnamon Apple Pie

Da tarte ao almoço que era lanche
Ficou-me uma mancha
Escura, de maçã com canela,
No botão branco da blusa branca

Que deixou de ser tão branca
Por ter agora uma nódoa negra,
Tão negra como a
mulher ao meu lado que,
Sem dentes para mastigar
A dor e a fome,
Lamentou não ter dentes,
Nem tarte de maçã com canela,
Nem blusa branca com botão branco
Que o descuido pudesse manchar.