Eles olhavam e não a viam. Ela fazia mais sombra do que existia.


Clarice Lispector, “Preciosidade”, Laços de Família (Lisboa: Relógio d’Água) 76.

é pois vício ou loucura
inclinar a cabeça de mão
dada com a insónia
durante a caça ao indizível

(esfomeada, cão e seta)

o rasgão na manga da camisola
roxa faz-se ponte
para a viagem dos inquietos

em uníssono, batemos à
porta da lua cheia:

por um momento
esquecemos o frio agudo
no cabelo da madrugada


São estas andorinhas à pressa
uma primavera de frio gentil:
não entendo a longitude do teu ser
por ser freático e matinal;
acolho-te no desconhecido
vale entalado entre as mãos
— de frente como a um espelho —
e afogo-me na promessa
das cerejeiras por arder.

calada oiço a conversa das nuvens
afunilada em rimas e dispersão

liquidamente, os pássaros descem
aos ninhos claros na garganta dos
troncos

uma e outra espera
(pela luz verde, às vezes o café)

sou de novo a dança espessa
das árvores loucas em excesso
ardente

Finisterra (ou a impossibilidade das gaivotas sem sal)


“Uma borboleta sai da sua pupa, chegando ao estado de adulta. Espera-se uma vida efémera, com apenas alguns meses de duração.”*

Dormimos um sono de concha fechada
esquecida de pérolas e línguas frescas.
Se o horizonte do possível está ferido
pelo se repete e mais entope
(de)formemo-nos pois no voo difuso
das borboletas abertas, na fímbria das praias.

*Diário de Notícias (01/04/2010)