Sopa Fria

Hoje é uma daquelas tardes de sopa fria, em que dou por mim parada à janela, com um gato bravo molhado ao colo. A vida dos outros chega-me às postas, escorrendo melosa pelos cortinados: promessas frescas de crianças e pássaros, uma intensa novidade que mais ainda me aborrece o gelo.
E por aqui fico parada, espantada a devorar nacos da vida dos outros, sem cuidado algum em escolher partes ou cuspir ossos. Que me engasgue, pois então, que tussa roxa de acidente, a cara a afogar-se no remoinho do quotidiano...
Trago a barriga cheia de café morno, não vi a senhora, não vi o papa, não vi ninguém para além da vizinha a estender roupa, arranhando o prédio como se tocasse um violino.
Os pés são dois e desiguais, e às mãos não sei o que lhes fazer. Ter este tempo todo para mim, inteiro e raivoso, e bastar-me no excesso da mesa e do sofá. Temos de ir variando, entre tragédias e outras comédias. Por isso hoje sou o lambril da casa, suja e farta dos dias todos, iguais, brevemente levitada pela pressa de quem vai passando.
Também eu faço por ir passando, mas os pés encolhem-se e tropeçam, embriagados sobre umas andas de palhaço. Continuo a ter seis anos, disfarçados pelos saltos altos da minha mãe. O espelho partiu-se e sobrou apenas a metade do meio, pelo que não vejo a cara nem os pés, nem os sete anos de azar que me foram prometidos.

Volto já. Vou só ali aquecer a sopa.
dentro sente-se a fuligem
num sonoro ricochete
que quebra
a mão felina, a que
fermenta as tempestades
numa pluma vulcânica
tomando súbita o céu da
boca (sonolenta)

abre a porta
aos murmúrios do asfalto
ao que faz falta falta
mar falta dor falta pele
gente corpo falta —