En passant


São estranhos, os lugares. Mais ainda, se por nós criados. Este lugar foi talhado a partir de uma solidão aguda, um pouco a medo, saltitando entre a penumbra da margem e a luz refractada do rio.
Talvez lhe tenha calculado mal a geografia.
Durante algum tempo, foi um espaço de ampla melodia, onde me fui espraiando em palavras, imagens e sons.
Sempre lhe apreciei o silêncio, regularmente interrompido por vozes outras de impecável doçura e alento.
Mas tão de lado fui pondo este espaço, que a certa altura ele se foi fechando sobre si mesmo, devagarinho, as pétalas dobrando-se para dentro com o frio da noite.
E todo este negrume. É certo que emoldura muito bem as imagens, mas neste momento vejo-o apenas como um espelho unicamente capaz de reflectir a minha face. Dispenso bem ver-me com tanta intensidade.
Preciso de respirar numa outra cor, uma vez que os meus dedos já não se vestem tanto de preto.

Fomos crescendo, eu e este lugar, em direcções diferentes. Este espaço seguirá o seu caminho para lado nenhum. Eu passo a estar aqui.

Fotograma: Orphée (1950), Jean Cocteau

uma qualquer ocasião interna

intervalo

seguem-se as ondas de bolotas a tilintar
telhado adentro
uma súbita fatia de murmúrios por levedar
ou, uma janela fechada por previsível timidez

as ruas um rio de tinta
desviado de veias outras e os sinos
desdobrados num sono leve em suspensão

nestes dias
enterram-se os trevos nas lapelas dos casacos
e as minudências de anteontem pesam-nos frias
sobre a elipse encurvada do dorso

um pouco atrás

abre-se a janela
e a chuva torna-se legível
no movimento lento da escuridão
Let's face it. We're undone by each other. And if we're not, we're missing something.


Judith Butler, Precarious Life: The Powers of Mourning and Violence (London: Verso, 2004) 23.



... Brindo a todo lo que quiero dar
A todo lo que está a punto a empezar ...

Fotograma: Me and You and Everyone We Know, Miranda July (2005)


Caliban

já não sangro pelas entrelinhas
dos postais outrora escritos
na proa irisada do navio
em viagem. guardo
do desembarque naquela ilha
o manual de introdução ao canto
dos pássaros que me deste,
as franjas douradas, o baú
o império que te dei

caliban destemido trono

já não há tempestade que nos salve
desta agrura estreme
dos dias limpos e iguais
eu rezo ao teu deus em apneia
tu falas a minha língua de metais
mas à mesa só sabemos recortar
a toalha em barquinhos de papel
que navegamos para longe
na nossa ingénua violência

Receita para fim de tarde




há-de haver neste vinagre
a medida certa de outra aurora
um fontanário rubro a brotar entre
três chávenas quebradas
numa cozinha ausente
e no telhado, uma laje inclinada
como o caderno da escola
que o trabalho de casa fechou

tape a boca e espirre, menina
respire

faça do calor uma ferramenta
aguçada para cozer bolos e
fermentar crianças
para esquecer
o vinagre que lhe foge
da boca e lhe tinge
o vestido de azul-cinzel, azul
como o quadrado da entrada
(esse torto, aí ao fundo)
o que lhe devora a mão direita
quando adormece e se lembra
das intempéries, todas elas
roídas inteiras pelo chão da casa

respire

faça calor com as suas mãos
e retire
do vinagre a aurora e a cozinha
fervente

respire

do chão o calor, da mão um machado
febril rachando portas no ar
seco deste tempo baço
e febril

respire

To know my blind spot



The room inside me has disappeared. At night, when all is quiet, I no longer hear the pictures shifting on the walls when I walk fast. Only the pump in the basement. I wonder whether the space has folded in on itself like a tautology, or been colonized. You think the wine has washed it out, and it's true that the mirror tilted at a reckless angle. I still have the floor plan with measurements, but now that nothing corresponds to it I can only take it as part of the emptiness I try to cover up with writing. To know my blind spot. I have always wanted to dilate my landscape for the piano and the long labor of losing the self. Though I am too nearsighted for clouds. If I had lived a different image.

Waldrop 1987, 71

É um fino início de primavera.

atravesso a corte o país transverso
através de pontes e raposas breves
enferrujadas pelas lixeiras
a céu aberto, tombando chuva:
18º C: um mar espesso de nevoeiro
onde adivinho cobras cegas, folhas
negras, pontas soltas de oliveiras
a arder a arder num sopro atroz:
pinheiros bravos: a resina
lava espessa flamejante:
13ºC: três estações – a primavera,
o verão, a primavera – passam a salto
as fronteiras dos olhos frescos
que trago nesta manhã silícica
e atravesso
a corte a longitude desta nesga
num carro cheio, de cebolas e rosas brancas
o cheiro de ambas lembrança afónica
por chorar, o cheiro de ambas bilhete
gasto a dobrar – em quatro – e a guardar:
um verso: inverso de outra estação que
supero – talvez em vão – nas cornucópias
sincopadas das raposas, dos pinheiros,
das cobras e das cebolas que vão ardendo
(e ardem ardem) e que vou chorando
por saber que nada disto cabe aqui
(não pode, não cabe) pois este aqui
quer-se liso e retumbante
como um beijo de campanário
e não rugoso ou afrontado
pelas montanhas que atravesso
de modo exangue
em corte transverso: 18º C:
é um fino início de primavera.
guardo as cebolas e as rosas brancas
no bolso cavo do inverno mudo.