Hoje era dia para se usar aquele cachecol castanho. Era dia para me levantar cedo e ficar com espaço de sobra para a preguiça, para o café, para o Outono a dançar à janela. Sairia depois de casa, fluida e vertical, com as mãos enfiadas nos bolsos da possibilidade matinal.
Hoje não era dia para haver chuva afiada a furar-me o casaco, abrindo pequenos poros por onde o frio se espeta nos braços e nas costas. Hoje não era dia para me assaltares mesmo antes de acordar, para me roubares o tempo da preguiça, do café, e do cachecol, o meu zénite mundano que acabou por ficar esquecido atrás da porta.
Não estava a contar que aparecesses hoje, sorrateiro, felino bravo. E agora aqui estás tu, sentado entre mim e este teclado perro, amputado de acentos e cedilhas. Desde as dez da manhã que te tento escrever para te poder mandar embora, mas as teclas em falta encurtam-me os braços e atrasam-me a escrita.
Sinto a minha língua como uma estranha assombração, um sussurro, o eco longínquo de um jardim suspenso. Refugio-me no conforto da folha branca, mas até aqui as palavras se encolhem com o frio, envergonhadas pela tua presença inesperada, tão fantasmagórica como a minha língua e os meus jardins.
O dia de hoje não era para ser assim. Hoje era dia de ser alta e triunfal, de me lembrar que finalmente me tinha esquecido de ti. O cachecol castanho fez-me falta.
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