MANIFESTO


“And no birds sing.”

John Keats, “La Belle Dame Sans Merci”, e “sans” referência bibliográfica, que hoje estou muito insurrecta



Aqui, não cantam pássaros. Os rouxinóis secaram há muito com as últimas geadas, e das cotovias sobrou apenas um ovo murcho embrulhado num ninho velho.
Como escrever sem pássaros? Sem ovos, e sem ninhos?
Resta-me a geada. E a planície, claro. A minha longa e inclinada planície marginal, “desviada do teu relevo fantomático” (não, “fantomático” não existe em Português, mas existe para mim).
Como escrever sobre o frio e o pó da terra?
Resta-me a planície. Um árido deserto prolongado, onde me perco e por vezes me encontro. É solitário, sim. E amargo, também. “Ser feliz é um plágio. Escrever, um dever amargo.” Será um dever, ou talvez uma obrigação. É uma queda inesperada, e uma angústia suspensa, sempre.
Há quem escreva em realização profunda, quem abrace a página (ou o ecrã, nesta versão actualizada) e a cubra de beijos e olhos meigos. Há quem a dobre em quatro partes perfeitinhas, num bilhetinho endereçado ao amor que nunca o foi. E há quem escreva às cotoveladas, imperial e militarista, constantemente a atirar pedras aos telhados dos vizinhos.
Há toda uma gente estranha que diariamente morre e de novo nasce em gatafunhos clandestinos, exilados em guardanapos de café, talões de multibanco e maços de tabaco já fumado.
E há espaço para todos, para os que escrevem por amor, por vaidade, por anseio, por receio, por necessidade, por abandono, por falta, por excesso, por ausência, por ilusão, por fome, por solidão, por sede, por solidão.
Há espaço para todos, até para quem escreve sem pássaros, num país onde os espelhos se reformaram e as maravilhas estão em vias de extinção.

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