“You bet your ass it’s cold!”

O autocarro segue lento, cheio de gente e de cansaço, pesado com a saturação abafada de sexta-feira à tarde. Sento-me num dos poucos lugares vagos, ao lado de um homem pequeno de cabelos brancos.
Nada mais lhe noto a não ser a intensidade do cheiro: para além da típica transpiração repassada, sinto-lhe um leve travo a verde misturado com castanho, um odor que me lembra lenha acabada de cortar. Evito espreitar o cheiro; as cidades ensinam-nos a olhar sempre em frente, ao lado e através das pessoas. Por respeito, por medo, ou por isolamento. Trinta e duas ilhas ancoradas a um autocarro.
“Wish me luck, honey!”
O homem estende-me um papel quadrado. Parece-me um bilhete da lotaria, com letras vermelhas e azuis espalhadas ao longo de várias figuras geométricas; uma promessa de liberdade num pedaço de papel.
“Wish me luck!”
Olha para mim a direito, sem o receio que as ilhas costumam ter quando trocam marés ou roçam as praias sem querer. Usa uns óculos de lentes fundas, encaixadas dentro de uma armação ampla prateada. A placa dentária fica-lhe larga dentro da boca, e a forma como dança com as palavras atrapalha-me um pouco a compreensão. Tudo no homem é largo, desde o cabelo comprido ao blusão de ganga, um corpo vasto que aceitou conter alguma da sua fluidez dentro de roupas e armações.
“Well, good luck, then!”
“Yeah, I could really use the money…” Baixa os olhos, esquece-se deles por momentos entre as rugas das mãos. “I’m gonna visit my family up in Alaska, you know, and it’s so damn expensive…”
Pergunta idiota.
“Alaska… Is it cold there?”
Nem a boca nem a placa lhe seguram o sorriso.
“You bet your ass it’s cold!”
Rimo-nos os dois com gargalhadas à solta, furando o chumbo seco do autocarro como bandos de pardais sem ninho. Desta vez olho para ele também a direito, e percebo que, ao contrário das ilhas, nós os dois somos árvores cortadas, condenadas à mesma obsessão enublada de raízes e terra funda. Levanta-se, deixa cair mais uma gargalhada.
“You take care. Wish me luck!”

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