Era maluco. Todos o conheciam por ser invisível, no seu cabelo emaranhado em terra e nas suas roupas gastas pela calçada. Apenas os alfinetes do olhar firmavam a sua existência naqueles que por si passavam, ao longe.
Era maluco. Quase nunca falava, e as poucas palavras que saíam do rasgo que tinha no rosto eram silvos, uivos absurdos de braços desarticulados. Assustava as crianças, afligia os comerciantes. “Água salgada… Ponte! Ponte!... Era ela!... Sai daí, diabo!”
Dormia na rua, com cães vadios dentro de caixotes, a colmeia do cabelo a servir-lhe de almofada. Por vezes, despia-se e ficava semi-nu, o torso lívido num violento contraste com a cara e as mãos ressequidas. Abria a boca toda e ria como Tirésias, os dentes arruinados a espreitar por entre os limos que lhe cobriam a barba desgovernada.
Era maluco. A sua presença assombrava a Baixa por ser prova concreta de um outro mundo, pairando como um fantasma entre bancos de jardim, ampliado no reflexo turvo das montras e das fontes.
Era maluco. No entanto, nunca ninguém olhou para as estátuas com tanta lucidez.

2 comentários:

Barroso disse...

Já agora, um olhar lucido também de quem escreveu isto.

Alice Gabriel disse...

:)