Não tenho por hábito servir-me deste espaço para dar conta de qualquer opinião e/ou posicionamento que possa ter sobre o que quer que seja. No entanto, desta vez achei por bem interromper o tom (aparentemente) neutro deste solitário ermo para me pronunciar sobre os últimos desabamentos provocados pelo “ancien terrible” José Saramago. Não porque o senhor me provoque especial urticária ou simpatia artística, mas apenas porque tentar falar sobre Saramago nestas terras do Tio Sam é o mesmo que falar sobre Brejnev ou Alexandre, o Grande. Quem? Pois. Adiante.
Depois de ouvir atentamente o vídeo em que Saramago profere as "ignomínias" que já lhe valeram sugestões de renúncia de cidadania, apraz-me dizer o seguinte: não é tanto o que se diz, mas a forma como se diz. Usar “Bíblia” e “idiota” (repetidas vezes) na mesma frase, sugerir que Deus é preguiçoso e chamá-lo de “cruel, invejoso, e insuportável”, não cai bem. Qualquer uma destas palavras é ofensiva, independentemente do contexto, mas mais ainda quando surge associada a crenças religiosas.
O tom paternalista iluminado que o escritor assume enquanto desconstrói a criação do mundo, chamando a atenção para a impraticabilidade de o mesmo ter sido criado em seis dias (como nunca criei um universo, não faço a mínima ideia de quanto tempo demorará), coloca-o num patamar de ingenuidade por entender que ainda se vive num total obscurantismo religioso, e que todas as pessoas aceitam a Bíblia de forma literal, sem qualquer mediação interpretativa.
Ora isto coloca uma série de questões. Em primeiro lugar, quem efectivamente acredita que o mundo foi criado em seis dias, não me parece que tenha grande interesse em ler Saramago, nem tampouco em ser provocado a lê-lo. E estará no seu pleno direito de ter as suas crenças e de ignorar escritores de língua destravada. Em segundo lugar, quem realmente leu a Bíblia, sabe perfeitamente que Saramago se está a referir ao Antigo Testamento e a tomar, erradamente, o todo pela parte, ao considerar este conjunto de livros como um “catálogo de crueldade do pior da natureza humana”.
Quem realmente leu a Bíblia, sabe que há uma diferença significativa entre o Antigo e o Novo Testamento: no primeiro, é “olho por olho, dente por dente” (Êxodo 21: 24) e, no segundo, leva-se uma bofetada e dá-se a outra face. Quem realmente leu a Bíblia, ou pelo menos espreitou uma ou outra epístola, há-de encontrar, especialmente no Antigo Testamento, um rol imenso de crueldades divinas: ele é cidades destruídas, dilúvios, profetas à força, crianças que são oferecidas em sacrifício mas que depois são poupadas à ira sagrada, e por aí fora.
Mas quem é que realmente leu a Bíblia? Critica-se Saramago por ter criticado a Bíblia, mas a verdade é que pouquíssima gente algum dia se deu ao trabalho de a ler. De uma forma geral, a maneira como se vive a religião católica é, no mínimo, curiosa: a maioria das pessoas só se lembra que é católica quando alguém ataca um dos pilares do cristianismo, ou quando há casamentos e baptizados. E aqui chegamos ao ponto que me esgotou de qualquer crença há muito tempo: a Igreja não incentiva a leitura crítica da Bíblia, porque sempre que tal é feito, uma nova religião aparece.
Saramago peca pela sua leitura simplista e anacrónica ao descrever a Bíblia como um “manual de maus costumes”, partindo do pressuposto que todas as pessoas se pautam cegamente pelos seus trâmites. Mas a Bíblia não se limita a apresentar castigos cruéis e caprichos divinos; nas suas páginas, encontramos também o amor, o perdão, a generosidade, aquele profundo de alma que nos torna a todos igualmente humanos, e que está muito acima de qualquer religião, igreja, ou prémio Nobel. No fundo, este livro apresenta-nos tal como somos: frágeis e imperfeitos, e por isso mesmo faz todo o sentido lê-lo, com olhos de ler, independentemente de qualquer (des)crença.
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