“Writing, writers, do not come out of houses without books.”
Doris Lessing



Cresci numa casa onde havia dois livros, de culinária. Um deles, oferecia-se como manual para jovens noivas, e o outro, afirmava pôr a descoberto os tesouros da cozinha tradicional portuguesa. Ambos cheiravam a bolo de maçã com canela. Ambos sofreram com a minha fome de letras, mortalmente feridos na lombada pelas vezes sem conta que os folheei e revirei.
Na minha casa, não havia paredes forradas a livros. Quando passei a ser gente autorizada a ter querer, comecei a pedir livros. Nenhum deles me foi recusado. Os Cinco e os Sete viajavam nas carrinhas da Gulbenkian; na biblioteca da minha aldeia, moravam o Júlio Verne e a Condessa de Ségur; a raposa do Aquilino, essa, respingava na casa do meu tio mineiro.
Não havia colecções inteiras de enciclopédias, nem sequências camonianas ou prateleiras queirosianas. Havia a certeza das quatro estações divididas pelo cheiro das árvores, as noites alumiadas pelo mapa espantado das constelações, o eco, animal à solta nas montanhas vestidas de caruma seca.
Na sala 1138, fala-se de poesia. Disseca-se poesia. John Keats, John Milton, John Ashbery. All Johns, no Joans. O procedimento é simples. Abre-se o poema de cima a baixo, retira-se-lhe a pele, respigam-se as entranhas, (a aorta dá de si), corta-se-lhe o coração em quatro partes iguais. Pesam-se os quartos, uns mais tenros e suculentos, outros menos eficazes.
No fundo da sala, uma traça atira-se violentamente contra a janela, agastada com o cheiro a sangue fresco na sala onde se lê poesia. Onde se disseca poesia. Atira-se com tanta força, que as asas de tule preto começam a acusar rasgões.
A traça quer sair porque a poesia está lá fora, dispersa na plenitude ilusória das nuvens e nas feridas secas das sarjetas. A traça cansa-se de lutar contra a janela. É obrigada a ficar dentro da sala. E fica, quieta no parapeito. Ouve, entende, desentende, olha de novo lá para fora, esquece o que ouviu, lembra, deslembra o que entendeu. Fica quieta, enquanto assimila os restos daquela varonil dissecção, soletrando as rimas e os pés entretanto caídos sobre as flores azuis da carpete.


2 comentários:

Barroso disse...

Isto é belíssimo. Tenho inveja da tua escrita! :)

Alice Gabriel disse...

oh... (sorriso corado de agradecimento...)