... Brindo a todo lo que quiero dar
A todo lo que está a punto a empezar ...

Fotograma: Me and You and Everyone We Know, Miranda July (2005)


Caliban

já não sangro pelas entrelinhas
dos postais outrora escritos
na proa irisada do navio
em viagem. guardo
do desembarque naquela ilha
o manual de introdução ao canto
dos pássaros que me deste,
as franjas douradas, o baú
o império que te dei

caliban destemido trono

já não há tempestade que nos salve
desta agrura estreme
dos dias limpos e iguais
eu rezo ao teu deus em apneia
tu falas a minha língua de metais
mas à mesa só sabemos recortar
a toalha em barquinhos de papel
que navegamos para longe
na nossa ingénua violência

Receita para fim de tarde




há-de haver neste vinagre
a medida certa de outra aurora
um fontanário rubro a brotar entre
três chávenas quebradas
numa cozinha ausente
e no telhado, uma laje inclinada
como o caderno da escola
que o trabalho de casa fechou

tape a boca e espirre, menina
respire

faça do calor uma ferramenta
aguçada para cozer bolos e
fermentar crianças
para esquecer
o vinagre que lhe foge
da boca e lhe tinge
o vestido de azul-cinzel, azul
como o quadrado da entrada
(esse torto, aí ao fundo)
o que lhe devora a mão direita
quando adormece e se lembra
das intempéries, todas elas
roídas inteiras pelo chão da casa

respire

faça calor com as suas mãos
e retire
do vinagre a aurora e a cozinha
fervente

respire

do chão o calor, da mão um machado
febril rachando portas no ar
seco deste tempo baço
e febril

respire