Vi-a definhar lentamente enquanto alimentava aquela casa todos os dias. Inenarráveis, eram os seus braços e as suas pernas, sisíficos membros que carregavam pratos e travessas montanha acima, montanha abaixo, todos os dias, todas as noites.
Todos os dias, fazia comida que se comia, e que de novo se fazia e se comia, em loiça que se sujava e se lavava e sujava, sujava. Havia também a roupa que se sujava e se lavava e ficava manchada pela vida daqueles que eram os seus, uma vida tão distante da sua como os aviões que cruzavam teias de fumo branco sobre a abóbada azul estendida ao longo da rua.
As suas mãos eram o coração daquela casa, o cerne onde convergiam todas as fissuras das paredes, veias que se enchiam de sangue sempre que ela cortava carne, fervia água, partia um copo ou bordava pássaros.
Via-a minguar enquanto os filhos cresciam e o marido arrefecia, enquanto revirava as suas entranhas para que a casa continuasse a respirar, arrumando móveis e retratos a sépia nos recantos do seu próprio ventre.
Foi diminuindo um pouco mais todos os dias, todas as noites, até que um dia se escoou completamente por entre os ladrilhos da cozinha. Deixou para trás um marido frio, dois filhos em quarto crescente, e uma casa desventrada.
Foto: R. Zorno