Lake Michigan (2009)


"So we beat on, boats against the current, borne back ceaselessly into the past."


Última frase do Great Gatsby que, em vez de terminar um livro, inicia outros tantos

Mental Note # 11

What is found there



It is difficult
to get the news from poems
yet men die miserably every day
for lack
of what is found there.

William Carlos Williams, "Asphodel, That Greeny Flower"
Photo: Edoardo Pasero

O mais belo poema

escreve-se à noite
em contra-luz
no perfil morno do espelho turvo
enevoado de sombras roçando
as mãos — de manso

O mais belo poema ri-se
debaixo da cama
dança destemido entre os fantasmas
na ponta dos dedos ensandecidos
pelas palavras em explosão muda

O mais belo poema nasce
da costela arrancada à insónia
e permanece
— suspenso —
entre o lençol e a tua pele
entre o choro da criança
e o gato

a respiração

do chão
das paredes


Nights don't end,
---------------------they fall apart.



Eileen Myles, The Importance of Being Iceland (LA: Semiotext(e), 2009) 63.

“You bet your ass it’s cold!”

O autocarro segue lento, cheio de gente e de cansaço, pesado com a saturação abafada de sexta-feira à tarde. Sento-me num dos poucos lugares vagos, ao lado de um homem pequeno de cabelos brancos.
Nada mais lhe noto a não ser a intensidade do cheiro: para além da típica transpiração repassada, sinto-lhe um leve travo a verde misturado com castanho, um odor que me lembra lenha acabada de cortar. Evito espreitar o cheiro; as cidades ensinam-nos a olhar sempre em frente, ao lado e através das pessoas. Por respeito, por medo, ou por isolamento. Trinta e duas ilhas ancoradas a um autocarro.
“Wish me luck, honey!”
O homem estende-me um papel quadrado. Parece-me um bilhete da lotaria, com letras vermelhas e azuis espalhadas ao longo de várias figuras geométricas; uma promessa de liberdade num pedaço de papel.
“Wish me luck!”
Olha para mim a direito, sem o receio que as ilhas costumam ter quando trocam marés ou roçam as praias sem querer. Usa uns óculos de lentes fundas, encaixadas dentro de uma armação ampla prateada. A placa dentária fica-lhe larga dentro da boca, e a forma como dança com as palavras atrapalha-me um pouco a compreensão. Tudo no homem é largo, desde o cabelo comprido ao blusão de ganga, um corpo vasto que aceitou conter alguma da sua fluidez dentro de roupas e armações.
“Well, good luck, then!”
“Yeah, I could really use the money…” Baixa os olhos, esquece-se deles por momentos entre as rugas das mãos. “I’m gonna visit my family up in Alaska, you know, and it’s so damn expensive…”
Pergunta idiota.
“Alaska… Is it cold there?”
Nem a boca nem a placa lhe seguram o sorriso.
“You bet your ass it’s cold!”
Rimo-nos os dois com gargalhadas à solta, furando o chumbo seco do autocarro como bandos de pardais sem ninho. Desta vez olho para ele também a direito, e percebo que, ao contrário das ilhas, nós os dois somos árvores cortadas, condenadas à mesma obsessão enublada de raízes e terra funda. Levanta-se, deixa cair mais uma gargalhada.
“You take care. Wish me luck!”

Antonio Mancini, "Il Saltimbanco" (1879)



Cf.


Hoje era ontem que te escrevia
pelo nome na ardósia
dos passeios, de joelhos
quase em promessa ou
oração talvez
castigo: cem mil vezes
o teu nome a direito
(redondo repetido)
numa letra tão perfeita
caligrafia tão medonha
uma mandala: era o meu cosmos
largado ao chão feito de giz
a cortar-me a mão
finas valetas de talvez um dia
entre os dedos e os pulsos
(roxos
exangues) talvez um dia
vieram as chuvas
de Março ou de Novembro
(já não me lembro)
sobre o bordado colossal
do lencinho enamorado
de perfeita ortografia
houve um dia (ontem ou hoje)
murchou-te o nome numa aguarela
perfeita osmose que semeou
o teu nome nas minhas mãos
entre as valetas. Levanto-me
sim de joelhos negros
aliviados por te ver agora
estrela do norte serena chama
entre os cometas da minha estrada
por onde vou sobre os telhados
abrir a porta a outras constelações.

Tragédia em dois Actos


"The more the universe seems comprehensible, the more it also seems pointless."

Steven Weinberg

Ekphrasis II



“E basta de comédias na minh’alma!”
F. Pessoa

Se cansado amuo o pé no banco torto
É porque me criaste coxo, menino baixo
Inacabado por crescer, engasgado na nossa
Animação de penas dissonantes e flores de papel.

Sou pequeno, menino sim, metáfora enfezada se
Assim o entenderes, mas que culpa tenho eu
Dessa tua insensatez que nos atira às
Alcateias nas aldeias e cidades?

Chega de noites ao relento em celeiros.
Basta de pipocas e cornetins a uivar nas arenas.
Chega de anéis em fogo, palhaços rotos e pombas
Brancas: já não tenho sequência para tamanha alegoria.

Tu bem queres que o meu canto seja canora virtuosidade
Plena de dom, rasgo de honor e suavidade; lamento
Mãe, hoje estou doente de palavras, e a palidez
Do fato velho que me compraste é cama lenta

Onde a escassez de palmas me adormece.
Não me atires para a arena de cara suja, com as
Mãos febris e a boca seca; que mãe és tu? Não me tapes
Os defeitos e os assíndetos com lantejoulas e tapetes caros.

As flores ardem com os gritos dos pavões, mãe. O circo segue,
As gentes choram, mas os tambores defumam o eufemismo
Da nossa ausência. Arde-me a língua mãe, quero dormir,
E hoje ficas tu a traduzir as tragédias em comédias.






Desfaço-me em rios, faço-me em rimas.

Foto: Stepen Arens







“Writing, writers, do not come out of houses without books.”
Doris Lessing



Cresci numa casa onde havia dois livros, de culinária. Um deles, oferecia-se como manual para jovens noivas, e o outro, afirmava pôr a descoberto os tesouros da cozinha tradicional portuguesa. Ambos cheiravam a bolo de maçã com canela. Ambos sofreram com a minha fome de letras, mortalmente feridos na lombada pelas vezes sem conta que os folheei e revirei.
Na minha casa, não havia paredes forradas a livros. Quando passei a ser gente autorizada a ter querer, comecei a pedir livros. Nenhum deles me foi recusado. Os Cinco e os Sete viajavam nas carrinhas da Gulbenkian; na biblioteca da minha aldeia, moravam o Júlio Verne e a Condessa de Ségur; a raposa do Aquilino, essa, respingava na casa do meu tio mineiro.
Não havia colecções inteiras de enciclopédias, nem sequências camonianas ou prateleiras queirosianas. Havia a certeza das quatro estações divididas pelo cheiro das árvores, as noites alumiadas pelo mapa espantado das constelações, o eco, animal à solta nas montanhas vestidas de caruma seca.
Na sala 1138, fala-se de poesia. Disseca-se poesia. John Keats, John Milton, John Ashbery. All Johns, no Joans. O procedimento é simples. Abre-se o poema de cima a baixo, retira-se-lhe a pele, respigam-se as entranhas, (a aorta dá de si), corta-se-lhe o coração em quatro partes iguais. Pesam-se os quartos, uns mais tenros e suculentos, outros menos eficazes.
No fundo da sala, uma traça atira-se violentamente contra a janela, agastada com o cheiro a sangue fresco na sala onde se lê poesia. Onde se disseca poesia. Atira-se com tanta força, que as asas de tule preto começam a acusar rasgões.
A traça quer sair porque a poesia está lá fora, dispersa na plenitude ilusória das nuvens e nas feridas secas das sarjetas. A traça cansa-se de lutar contra a janela. É obrigada a ficar dentro da sala. E fica, quieta no parapeito. Ouve, entende, desentende, olha de novo lá para fora, esquece o que ouviu, lembra, deslembra o que entendeu. Fica quieta, enquanto assimila os restos daquela varonil dissecção, soletrando as rimas e os pés entretanto caídos sobre as flores azuis da carpete.


A Chinesa dos olhos secos





lava as mãos de manhã cedo. Cataratas escancaradas inundam-lhe os pés, as mãos e a cintura. Reza em concha, faz-se balde e entorna a água sobre os olhos. Aliviada, segura por instantes a humidade do sentir.
A chinesa dos olhos secos esqueceu-se de chorar. Na China chora, aqui só cora.
Fecha-se em casa, molha-se ao espelho, e eu, do alto da minha arrogância aquática (freáticos, os nervos e os tendões, à escuta sob a pele), estendo-lhe um olhar atravessado em ponte e esqueço, os dias em que fui, as horas em que sou, uma chinesa de olhos secos a fingir lágrimas ao espelho.
Foto: Flickr

Nocturno I






Não vejo tanta importância
na finitude de um cinzeiro;
amanhã

somos estranhos outra vez e
da nossa imensa curiosidade
sobra apenas um corpo túrgido

demolhado no desengano
que o exagero das mãos meninas
plantou na ponta das nossas línguas

esvaído o encantamento
pela grandeza dos fonemas em falta
amanhã somos

cada um

outra vez

O cinzeiro enfraquece no parapeito da noite.
Faróis e lucernas arranham a transparência das janelas.


Foto: flickr





Brooklyn Bridge (NY 2009)


. . . O Thou steeled Cognizance . . .

Hart Crane, "Atlantis", The Bridge








Nas horas de Novembro permanece
o arrastamento dos dias iguais
dobrados em manhãs tardias
entre as rugas da chuva ascendente.

Mudemo-nos para o alto das Arcádias
há muito enfurecidas pela descrença
e tracemos nas ovelhas e nos prados
a longitude de uma idade incandescente.

O que sabe o pastor poeta
esquecemo-lo nós
sem que algum dia o soubéssemos aprender

e agora, de Novembro até Janeiro,
ardemos sós na ponta da espada
forjada pelo terror das marés em transumância.