Do meu sangue

Soltar
Um coágulo verbal
É lamber
O rebordo de um copo
— rachado —
Cortar
A língua no rebordo
— quebrado —
Encher
O copo de sangue
— espesso —
Passar
O copo de sangue
— cheio —
Cheirar
O sangue que se engole
— quente —
Saído do corpo
— quente —
E dar
O sangue em palavra
— redonda —
Ser
De todos a palavra
— tomada —
E achar
Em todos o sangue
— perdido —


“Where one cannot see to think, one must feel.”


Claire Keyes, The Aesthetics of Power (Athens and London: The University of Georgia Press, 2008) 128.

Photo: Nina Leen




Bebeu o que restava da garrafa de vinho, na esperança de a reencontrar no fundo do copo. Sorveu os lábios. Ergueu os olhos e procurou os dela. Nada. Apenas dois botões secos afogados entre as pregas da blusa.
Ela jazia quieta, encaixada no seu fato luzente de alabastro. O seu único movimento saía-lhe da boca, um pedal mecânico que seguia mastigando aquela distância fria que os separava.
Sentados assim, frente a frente, afirmavam-se como dois pólos glaciais em flagrante oposição, dois nacos de gelo à deriva num mar hostil, sem qualquer meridiano de afecto que os amarrasse a um continente comum.
Levantaram-se da mesa. Ela apressou-se dois passos à frente dele, ambos os braços cruzados numa cerca fechada. Ele seguiu atrás dela, destilando a sua sombra com a ponta dos sapatos, na procura de uma essência que sabia estar, há muito tempo, extinta.


... Porque el alma prende fuego cuando deja de amar ...


Lhasa de Sela, "El Desierto", La Llorona (1997)
Photo: Lauren Bentley

Call me Ishmael

Algures no Mar Egeu, em 2007…

Whenever I find myself growing grim about the mouth; whenever it is a damp, drizzly November in my soul; whenever I find myself involuntarily pausing before coffin warehouses, and bringing up the rear of every funeral I meet; and especially whenever my hypos get such an upper hand of me, that it requires a strong moral principle to prevent me from deliberately stepping into the street, and methodically knocking people’s hats off – then, I account it high time to get to sea as soon as I can.

Herman Melville, Moby Dick (London: Wordsworth Classics, 2002) 3.


Não, não trago a boca sombria, nem é Novembro na minha alma;
Não me encontro perdida a acompanhar funerais de desconhecidos;
As minhas hipocondrias estão espartanamente controladas;
Não ando pelas ruas com ganas de destruição chapeleira.

No entanto… É chegada aquela altura do ano em que me é necessária a planura do mar, aquele fio-de-prumo horizontal que me equilibra o excesso de terra e de relevo dos dias comuns. Até breve.

A Minha Melhor Amiga

Foram muitos os anos em que lutámos uma contra a outra. Eu, tentando abafar-te com palavras, sons, lugares e pessoas. Tu, impondo a tua presença ininterrupta, sempre a quereres esticar-te um pouco mais, esse teu silêncio húmido a entranhar-se-me nos ossos.
Foram muitos os anos em que lutámos. Até ao dia em que nos cansámos, tu e eu. Pousámos as espadas, sentámo-nos e descobrimo-nos amigas. As melhores amigas.
Aprendi a apreciar a tua presença, a compreender esse teu quieto zumbido contínuo. Conheces-me como ninguém, tu. Conheces-me como alguém que dorme todas as noites no lado direito da minha mente, como alguém que me pega na mão direita quando danço e me segura a mão esquerda quando choro.
Eu sei que tu sabes de cor a dor que me causas. Eu sei que isso te condói, mas que nem esse teu enternecimento te faz partir. Tu sabes que, se partires, só te resta ser aquilo que realmente és: solidão. Por isso, ficas. E eu fico também, para que não te sintas tão sozinha.

Salamanca, 2008

Era uma vez um lugar com um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado para outro, e encontravam-nos, a eles, ao inferno e ao paraíso, e tomavam-nos como seus, e eles eram seus de verdade. As pessoas eram pequenas, mas faziam muito ruído. E diziam: é o meu inferno, é o meu paraíso. E não devemos malquerer às mitologias assim, porque são das pessoas, e neste assunto de pessoas, amá-las é que é bom. E então a gente ama as mitologias delas. À parte isso o lugar era execrável. As pessoas chiavam como ratos, e pegavam nas coisas e largavam-nas, e pegavam umas nas outras e largavam-se. Diziam: boa tarde, boa noite. E agarravam-se, e iam para a cama umas com as outras, e acordavam. Às vezes acordavam no meio da noite e agarravam-se freneticamente. Tenho medo – diziam. E depois amavam-se depressa e lavavam-se, e diziam: boa noite, boa noite. Isto era uma parte da vida delas, e era uma das regiões (comovedoras) da sua humanidade, e o que é humano é terrível e possui uma espécie de palpitante e ambígua beleza.

Herberto Helder, “Lugar Lugares”, Os Passos em Volta (Lisboa: Assírio & Alvim, 2006) 53 – 54.


. . .
It is more natural to me, lying down.
Then the sky and I are in open conversation,
And I shall be useful when I lie down finally:
Then the trees may touch me for once, and the flowers will have time for me.



Sylvia Plath, “I Am Vertical”, Collected Poems (London: Faber and Faber, 1989) 162.

Photo: Don Grall



Não era a minha alma que eu queria ter.
Esta alma já feita, com seu toque de sofrimento
e de resignação, sem pureza nem afoiteza.
Queria ter uma alma nova.
Decidida, capaz de tudo ousar.
Nunca esta que tanto conheço, compassiva, tortu-
rada, de trazer por casa.
A alma que eu queria e devia ter…
Era uma alma asselvajada, impoluta, nova, nova,
nova, nova!

Irene Lisboa, Poesia I (Presença: Lisboa, 1991) 296.


Silêncio

La Passion de Jeanne d’Arc, dir. Carl Theodor Dreyer (1928)


O Cavalo Branco

Passei grande parte da minha infância no sótão. Havia algo naquele espaço que me prendia ali tardes inteiras: seria a luz morna que pingava suavemente entre as telhas, o vento raspando música nas vigas, talvez o pó que cobria de esquecimento baús e quadros rejeitados. Uma jarra partida. Um xaile rasgado. Era neste cenário absurdo que eu dava vida às fadas e aos vampiros do meu faz-de-conta de criança, elevando o sótão dos meus pais à categoria de palco universal.
Certo dia, enquanto encarnava uma bruxa escarlate voadora, saltando de caixa em caixa com uma manta vermelha amarrada à volta do pescoço, tropecei num saco cheio de cacos. Interrompi de imediato o meu aceso e demoníaco voo.
Dentro do saco, estavam inúmeras lascas de mármore branco, perdidas na sua alvura glacial. Observei meticulosamente cada um dos pedaços, com o mesmo entusiasmo com que uma arqueóloga analisa fragmentos de um vaso fenício. Cada pedaço era macio e enigmático, encerrando em si um parágrafo de uma história por contar: uma crina ondulada, uma narina suspensa, um casco em riste.
Concluí por isso que aqueles cacos tinham outrora pertencido à figura de um cavalo. A partir desse momento, encetei a minha missão obsessiva de restituir todos aqueles estilhaços à sua unidade original. Todavia, os pedaços não se deixavam encaixar; sobravam sempre cacos obtusos, o que me fazia reiniciar a minha malograda demanda vezes sem conta.
Os anos passaram. A luz continuou a tingir as telhas de amarelo-alperce, mas o sótão deixou de ser o meu cenário predilecto para dramas e tragédias.
Há pouco tempo, durante um almoço domingueiro na casa de uma tia, reparei numa estatueta de dois cavalos brancos, em sereno repouso sobre uma estante, entre enciclopédias e pratos chineses. Quando o almoço terminou, aproximei-me da estatueta e avaliei-a atentamente. A finura dos traços, a alvura das formas e a suavidade do seu toque eram em tudo iguais às do meu enigmático cavalo do sótão. Descobri finalmente a razão que impelia aqueles cacos a professarem com tanta teimosia a sua fragmentação. Obviamente, as lascas de mármore não se deixavam reunir porque não pertenciam apenas a um cavalo, mas a dois...
No entanto, estes dois cavalos em consonância estavam muito longe da beleza milenar que eu tinha imaginado para a minha figura despedaçada. Mesmo quebrado e disforme, o meu cavalo branco continuava a ser mais livre e mais perfeito do que aquelas duas formas tão óbvias.

Si, habría que escribirlo así, elevado, devoto, casi total
si fuese posible, un gran poema
Pero hay interrupciones, los ruidos de la casa
la respiración del marido. El gato.
. . .

Hanni Ossott, “Una playa sin fin”, El reino donde la noche se abre. 1983 – 1986 (Caracas: Editorial Mandorla, 1987) 67 – 69.
Photo: Mia Friedrich

Manhã

Ficava esquecida
Na beira do quarto
Enrolando o cabelo
No quarto
O cabelo
Esquecido.

Sonhava por alto
O som da janela
Fechada, a cortina
De seda
O som
À janela.

Esticava a mão longe
Ao largo da cama
Tocava a distância
Do corpo
Na cama
Esticado.

Caía de novo
No fundo do linho
Rasgado, o olhar
De seda
De novo
No fundo
Do quarto.

The apparition of these faces in the crowd:
Petals on a wet, black bough.



O Baile

Mariana fora ao baile apenas porque a irmã lho implorara. Na semana anterior, foram as duas lado a lado, de ombros em uníssono, pedir ao pai que as deixasse ir ao baile de domingo.
— Baile? O que é que vocês querem ir fazer ao baile?
— Dançar um pouco, meu pai… Não tem nada de mal, e a Mariana também quer ir…
Mariana sempre fora a preferida de seu pai. Rapariga forte e severa, um rosto volfrâmico que nunca cedia, mãos resistentes às agruras do campo, menina obediente, calada. Já as irmãs eram umas andorinhas tontas, só sabiam chilrear de beiral em beiral e nunca o ajudavam quando ele precisava.
— Também queres ir, Mariana?
— Sim, meu pai… Quero ir ao baile com a Madalena…
O velho tirou a boina e consultou a cabeça com a ponta dos dedos.
— Sendo assim… Vão lá dançar. Mas tenham juízo, ouviram? Muito juízo!
No entanto, Mariana não tinha vontade nenhuma de ir ao baile. Músicas e cantorias nada lhe diziam: para ela, eram pura perda de tempo. Claramente, Madalena não partilhava dessa opinião.
— Anda dançar! — ofegou, corada e desalinhada, pegando na mão fria da irmã. Mariana resistiu ao convite, escondendo a mão no fundo do bolso da saia. Com ar pesado de mina funda, protestou:
— Não quero dançar. Já te disse que não sei dançar!
— Mas se quiser, eu posso ensinar-lhe…
De onde vinha esta voz? As irmãs olharam em simultâneo para um rapaz franzino encostado a um pinheiro.
— Desculpe, ensina-me o quê? — perguntou Mariana, escurecida pela desconfiança.
— Ensino-a a dançar. A menina não acabou de dizer que não sabe dançar?
O rapaz trazia uma boina castanha em declive e um colete aventureiro. Tinha uma expressão larga e viajada, com os olhos a transbordar da cara, certeiramente fixos em Mariana.
— Então, menina… Dançamos?
Inebriada pelo olhar luminoso do rapaz, Mariana aceitou. Nunca tinha dançado com um homem, só com as irmãs na sala da vizinha. O braço dele segurou-lhe firmemente a cintura fina e os seus olhos conduziram-na num movimento de cadência certa. A mão dele doce mel na mão dela.
— Não estejas nervosa. Deixa-te ir…
E Mariana foi. Voaram os dois por cima daquela gente cinzenta como a serra, levados pela música e pelo calor sincronizado das suas mãos. As saias de Mariana rodopiavam tão alto que, por vezes, revelavam a renda do saiote, denunciando o desvario que de repente invadira o seu corpo.
— Mariana, já chega. Temos que ir, senão o pai...
A tarde passou sem que Mariana desse conta. O rapaz continuou a sorvê-la com o olhar enquanto Madalena a puxava pela mão, torta e desordenada. A sua pele ainda pingava o sabor da música, os lábios sorriam-lhe cada vez que sentia o cheiro acre do rapaz na sua mão. O volfrâmio da face dera lugar a um suave pano de linho branco com duas papoilas bordadas.
No dia seguinte, Mariana não foi trabalhar.
Se entrasse a luz por um momento
Na casa imersa em escuridão —

Se abrisse os olhos de repente
No torpor da multidão —

Subissem flores pelas paredes
Caíssem cravos das estátuas —

Soubessem eles sua alegria
Esquecessem todos suas mágoas —

Se entrasse a luz de repente
Na casa imersa em multidão —

Se abrisse a luz por um momento
O torpor da escuridão —

Soubessem as flores sua alegria
Caíssem todas as estátuas —

Subissem eles pelas paredes
Esquecendo os cravos e as mágoas —

Na Paragem

Sexta-feira, final de uma tarde de Verão. Os carros encaminham-se ansiosamente para o fim-de-semana com o seu brilho maçado pedindo a lavagem de Domingo. O ar já esteve mais quente; a ausência do sol vai dando lugar à frescura nocturna, tão típica dos Verões adolescentes. E o 26, que nunca mais chega…
Sentada na paragem do autocarro, uma rapariga menina segura papéis nervosos. Ao meu lado, dois jovens, cujo olhar denuncia algo semelhante a um namoro, vigiam malas e sacos. “Olha, vem aí o 5!” E assim segue o suposto casal, com as suas malas e o seu fim-de-semana. Espreito o relógio. O 26 deve estar a chegar.
Quando levanto os olhos do pulso impaciente, chegam mais duas pessoas à paragem: uma mulher colorida, de idade madura e generosa, e um homem, de cabelo pardo, carregando também algumas décadas, cego.
Chega finalmente o 26. O autocarro abranda, buzina, pára. O homem reage ao som afunilado; estremece em movimento de partida, despede-se da mulher colorida. “Obrigado, bom fim-de-semana”. Entramos todos no 26: a menina nervosa, eu, e o senhor, que pede ao condutor que pare uns 5 metros mais à frente da paragem tal e tal.
Enquanto observo do primeiro andar em movimento as vidas abertas nas janelas dos carros, penso nas várias existências que decorrem paralelamente à minha, aparentemente semelhantes, mas tão diferentes. Duas pessoas na mesma paragem, à espera do mesmo autocarro. Eu, ansiosa por um número; o senhor, ansioso por um som. Ambos transportados numa corrida veloz em direcção ao alívio semanal. Eu, como de costume, construindo narrativas a partir das imagens retalhadas dos outros. O homem, com o rosto um pouco inclinado, ouvindo, acariciando os limites das coisas com o olfacto, tecendo as suas próprias narrativas.
O autocarro pára 5 metros mais à frente da paragem tal e tal. O senhor levanta-se, “Obrigado, bom fim-de-semana”, e sai. Segue depois encostado a um muro, pardo como o seu cabelo, tacteando o cimento rugoso feito mapa. Afasta-se, lentamente, em passos curtos e cronometrados, um pouco mais leves do que ontem, mais pesados do que amanhã. Ou talvez não.

So tell me where is my home

Walking by the fence but the house
not there

going to the river but the
river looking spare

bones of the river spread out
everywhere

O tell me this is home

Crossing the bridge but
some planks not there

looking at the shore but only
getting back the glare

dare you trust the river when there’s
no water there

O tell me is this home

Getting into town seeing
nobody I know

folks standing around
nowhere to go

staring into the air like
they saw a show

O tell me was this my home

Come to the railroad no train
on the tracks

switchman in his shanty
with a great big axe

so what happened here so what
are the facts

So tell me where is my home

Adrienne Rich, “Rhyme”, Telephone Ringing in the Labyrinth: Poems 2004 – 2006 (NY: W.W. Norton & Company, 2007) 44 – 45.
Photo: Ed Clark

(Sugestão: Ler o poema ao som desta música...)

Era maluco. Todos o conheciam por ser invisível, no seu cabelo emaranhado em terra e nas suas roupas gastas pela calçada. Apenas os alfinetes do olhar firmavam a sua existência naqueles que por si passavam, ao longe.
Era maluco. Quase nunca falava, e as poucas palavras que saíam do rasgo que tinha no rosto eram silvos, uivos absurdos de braços desarticulados. Assustava as crianças, afligia os comerciantes. “Água salgada… Ponte! Ponte!... Era ela!... Sai daí, diabo!”
Dormia na rua, com cães vadios dentro de caixotes, a colmeia do cabelo a servir-lhe de almofada. Por vezes, despia-se e ficava semi-nu, o torso lívido num violento contraste com a cara e as mãos ressequidas. Abria a boca toda e ria como Tirésias, os dentes arruinados a espreitar por entre os limos que lhe cobriam a barba desgovernada.
Era maluco. A sua presença assombrava a Baixa por ser prova concreta de um outro mundo, pairando como um fantasma entre bancos de jardim, ampliado no reflexo turvo das montras e das fontes.
Era maluco. No entanto, nunca ninguém olhou para as estátuas com tanta lucidez.