Liberty Island (NY 2009)
You are the candy melting
in my mouth.
Is that a euphemism
For what? Witnessing your love.
Intermission #1
Não tenho por hábito servir-me deste espaço para dar conta de qualquer opinião e/ou posicionamento que possa ter sobre o que quer que seja. No entanto, desta vez achei por bem interromper o tom (aparentemente) neutro deste solitário ermo para me pronunciar sobre os últimos desabamentos provocados pelo “ancien terrible” José Saramago. Não porque o senhor me provoque especial urticária ou simpatia artística, mas apenas porque tentar falar sobre Saramago nestas terras do Tio Sam é o mesmo que falar sobre Brejnev ou Alexandre, o Grande. Quem? Pois. Adiante.
Depois de ouvir atentamente o vídeo em que Saramago profere as "ignomínias" que já lhe valeram sugestões de renúncia de cidadania, apraz-me dizer o seguinte: não é tanto o que se diz, mas a forma como se diz. Usar “Bíblia” e “idiota” (repetidas vezes) na mesma frase, sugerir que Deus é preguiçoso e chamá-lo de “cruel, invejoso, e insuportável”, não cai bem. Qualquer uma destas palavras é ofensiva, independentemente do contexto, mas mais ainda quando surge associada a crenças religiosas.
O tom paternalista iluminado que o escritor assume enquanto desconstrói a criação do mundo, chamando a atenção para a impraticabilidade de o mesmo ter sido criado em seis dias (como nunca criei um universo, não faço a mínima ideia de quanto tempo demorará), coloca-o num patamar de ingenuidade por entender que ainda se vive num total obscurantismo religioso, e que todas as pessoas aceitam a Bíblia de forma literal, sem qualquer mediação interpretativa.
Ora isto coloca uma série de questões. Em primeiro lugar, quem efectivamente acredita que o mundo foi criado em seis dias, não me parece que tenha grande interesse em ler Saramago, nem tampouco em ser provocado a lê-lo. E estará no seu pleno direito de ter as suas crenças e de ignorar escritores de língua destravada. Em segundo lugar, quem realmente leu a Bíblia, sabe perfeitamente que Saramago se está a referir ao Antigo Testamento e a tomar, erradamente, o todo pela parte, ao considerar este conjunto de livros como um “catálogo de crueldade do pior da natureza humana”.
Quem realmente leu a Bíblia, sabe que há uma diferença significativa entre o Antigo e o Novo Testamento: no primeiro, é “olho por olho, dente por dente” (Êxodo 21: 24) e, no segundo, leva-se uma bofetada e dá-se a outra face. Quem realmente leu a Bíblia, ou pelo menos espreitou uma ou outra epístola, há-de encontrar, especialmente no Antigo Testamento, um rol imenso de crueldades divinas: ele é cidades destruídas, dilúvios, profetas à força, crianças que são oferecidas em sacrifício mas que depois são poupadas à ira sagrada, e por aí fora.
Mas quem é que realmente leu a Bíblia? Critica-se Saramago por ter criticado a Bíblia, mas a verdade é que pouquíssima gente algum dia se deu ao trabalho de a ler. De uma forma geral, a maneira como se vive a religião católica é, no mínimo, curiosa: a maioria das pessoas só se lembra que é católica quando alguém ataca um dos pilares do cristianismo, ou quando há casamentos e baptizados. E aqui chegamos ao ponto que me esgotou de qualquer crença há muito tempo: a Igreja não incentiva a leitura crítica da Bíblia, porque sempre que tal é feito, uma nova religião aparece.
Saramago peca pela sua leitura simplista e anacrónica ao descrever a Bíblia como um “manual de maus costumes”, partindo do pressuposto que todas as pessoas se pautam cegamente pelos seus trâmites. Mas a Bíblia não se limita a apresentar castigos cruéis e caprichos divinos; nas suas páginas, encontramos também o amor, o perdão, a generosidade, aquele profundo de alma que nos torna a todos igualmente humanos, e que está muito acima de qualquer religião, igreja, ou prémio Nobel. No fundo, este livro apresenta-nos tal como somos: frágeis e imperfeitos, e por isso mesmo faz todo o sentido lê-lo, com olhos de ler, independentemente de qualquer (des)crença.
Talvez ontem me tenha esquecido de morrer
mas, nos dias em que tenho a morte certa
(bafienta, entre o pescoço e o ombro esquerdo)
engulo de um só golpe a sua foice
e navego até ao fundo do chão agreste
numa sadia investigação no seio do mundo
Pendurada na falésia invertida do silêncio
faço do ventre e das mãos húmus da terra
vou fermentando a promessa dos vulcões
na minha carne calada entre as sementes
das borboletas desossadas, de asas podres
enubladas pela bebedeira da criação
No dia em que a terra se abrir de novo
ergo da morte interrompendo a negritude
e, enquanto elevo o tornado à luz salgada
verei pelas mãos e pelo céu-da-boca
a eterna roda das árvores em fogo
firmemente atravessadas pela seta da entropia
Hoje era dia para se usar aquele cachecol castanho. Era dia para me levantar cedo e ficar com espaço de sobra para a preguiça, para o café, para o Outono a dançar à janela. Sairia depois de casa, fluida e vertical, com as mãos enfiadas nos bolsos da possibilidade matinal.
Hoje não era dia para haver chuva afiada a furar-me o casaco, abrindo pequenos poros por onde o frio se espeta nos braços e nas costas. Hoje não era dia para me assaltares mesmo antes de acordar, para me roubares o tempo da preguiça, do café, e do cachecol, o meu zénite mundano que acabou por ficar esquecido atrás da porta.
Não estava a contar que aparecesses hoje, sorrateiro, felino bravo. E agora aqui estás tu, sentado entre mim e este teclado perro, amputado de acentos e cedilhas. Desde as dez da manhã que te tento escrever para te poder mandar embora, mas as teclas em falta encurtam-me os braços e atrasam-me a escrita.
Sinto a minha língua como uma estranha assombração, um sussurro, o eco longínquo de um jardim suspenso. Refugio-me no conforto da folha branca, mas até aqui as palavras se encolhem com o frio, envergonhadas pela tua presença inesperada, tão fantasmagórica como a minha língua e os meus jardins.
O dia de hoje não era para ser assim. Hoje era dia de ser alta e triunfal, de me lembrar que finalmente me tinha esquecido de ti. O cachecol castanho fez-me falta.
" It used to be said that when you heard a Ralph Stanley tune, you either wanted to get drunk or go to church and get saved."
Ekphrasis
Levo comigo o casaco da loucura
de nobreza antiga roxa seda
os folhos rotos desmembrados
pelas raízes tortas da lembrança
Esqueço no sótão alumiado
as portas rombas da sequência:
fecho-me em caixas, abro-me em espelhos
e tudo é forte real assombro
Nas noites cegas pela insónia
sou Josefina, feitiço grego
rainha-mãe, princesa-filha
dona de impérios descalçados
Que são os ratos? a minha corte
e os morcegos, bando de eunucos
desafinados trincam-me os pulsos
na triste ilusão de beber cianeto
Entorna-se a luz e aí estás tu
direito e liso contra a parede
― não digas nada, eu vejo em ti
o meu cabelo desarrumado
o meu casaco desapertado
o meu peito descoberto
pelo alvor agudo desta demência
Henri Rousseau, "A Carnival Evening" (1886)
Considerado um pintor "naïve", H. Rousseau não viu grande mérito reconhecido em vida, sendo o seu trabalho frequentemente ridicularizado e pouco valorizado. No entanto, este quadro prendeu-me mais a atenção do que outros tantos "geniais" em exposição. Pareceu-me genuíno. Às tantas, eu é que sou ingénua. Temos pena.
A Vindima
A terra nem sempre se dá com ligeireza. Alturas há em que decide fechar o seu ventre à chave e não abrir a porta a ninguém. A azeitona, por exemplo, é teimosa e fugidia. No cimo das oliveiras, faz-se difícil nas mãos, arrepiada pelo frio que a multiplica em bagos de gelo. Os dedos ferem-se nas suas arestas quando a tentam roubar à terra que, de boca faminta escancarada, a vai engolindo pelas covas das toupeiras.
A uva nunca me foi resistente, oferecendo-se brandamente em manhãs de Outono que se levantavam mais cedo do que o sol. Lembro-me da generosidade das videiras e das suas costas arqueadas pelo peso dos cachos. Das uvas a rebentarem-me nas mãos, desaguando em pequenos rios de sumo acre por entre os dedos. Vindimar era como descolorir uma terra parda, lavá-la de tintas azuis e lácteas e encontrar-lhe o perfil de montanha solitária.
Quando o sol se apagava, pisavam-se os cachos de braço dado para não cair, numa dança redonda cansada, mas animada pelo ritmo circular da roda, da vida, do vinho. Derretida em água, ficava a uva adormecida em quieta ebulição, devorando a carne das maçãs para alimentar a sua mudança.
O Outono cheirava ao mosto a ferver nas casas, ao ar engrossado pelo seu vapor que teimosamente se colava às narinas e arranhava a garganta. Seguiam-se os pipos, os alambiques e a aguardente, finamente vertida dentro de garrafões forrados com vime escuro. Seguia-se o repouso do vinho, a crescer e a adoçar-se, a fazer-se lenha para aquecer as noites de Inverno que não tardavam em chegar.
Imagem: Andy Warhol, "Grapes" (c. 1979 - ano de boa colheita...)
"New York is a city of characters. On the subway and in its streets, from the intensity of Midtown to the intimacy of neighborhood blocks, is a 305-square-mile parade of people with something to say. This is a collection of a few of their passions and problems, relationships and routines, vocations and obsessions. A new story will be added weekly."
Yet Do I Marvel...
I doubt not God is good, well-meaning, kind,
And did He stoop to quibble could tell why
The little buried mole continues blind,
Why flesh that mirrors Him must some day die,
Make plain the reason tortured Tantalus
Is baited by the fickle fruit, declare
If merely brute caprice dooms Sisyphus
To struggle up a never-ending stair.
Inscrutable His ways are, and immune
To catechism by a mind too strewn
With petty cares to slightly understand
What awful brain compels His awful hand.
Yet do I marvel at this curious thing:
To make a poet black, and bid him sing!
"Good News!"
A caminho do trabalho, naquela lamentação matinal do costume, agravada pela viagem curta mas tão pesada que se faz de metro, todos os dias me cruzo com uma lufada de sol que de imediato me pinta um sorriso na cara inteira.
Empoleirado em cima de um banco de ferro, um homem magro com a boca esvaziada pela idade vai vendendo os jornais do dia, soltando o seu pregão: “Good news! Enquirer! Get your good news here!”
Philadelphia não é uma cidade pródiga em boas novas. No entanto, as notícias que este senhor vende são sempre boas, anunciadas que são por uma alegria resistente e generosa.
MANIFESTO
“And no birds sing.”
John Keats, “La Belle Dame Sans Merci”, e “sans” referência bibliográfica, que hoje estou muito insurrecta
Aqui, não cantam pássaros. Os rouxinóis secaram há muito com as últimas geadas, e das cotovias sobrou apenas um ovo murcho embrulhado num ninho velho.
Como escrever sem pássaros? Sem ovos, e sem ninhos?
Resta-me a geada. E a planície, claro. A minha longa e inclinada planície marginal, “desviada do teu relevo fantomático” (não, “fantomático” não existe em Português, mas existe para mim).
Como escrever sobre o frio e o pó da terra?
Resta-me a planície. Um árido deserto prolongado, onde me perco e por vezes me encontro. É solitário, sim. E amargo, também. “Ser feliz é um plágio. Escrever, um dever amargo.” Será um dever, ou talvez uma obrigação. É uma queda inesperada, e uma angústia suspensa, sempre.
Há quem escreva em realização profunda, quem abrace a página (ou o ecrã, nesta versão actualizada) e a cubra de beijos e olhos meigos. Há quem a dobre em quatro partes perfeitinhas, num bilhetinho endereçado ao amor que nunca o foi. E há quem escreva às cotoveladas, imperial e militarista, constantemente a atirar pedras aos telhados dos vizinhos.
Há toda uma gente estranha que diariamente morre e de novo nasce em gatafunhos clandestinos, exilados em guardanapos de café, talões de multibanco e maços de tabaco já fumado.
E há espaço para todos, para os que escrevem por amor, por vaidade, por anseio, por receio, por necessidade, por abandono, por falta, por excesso, por ausência, por ilusão, por fome, por solidão, por sede, por solidão.
Há espaço para todos, até para quem escreve sem pássaros, num país onde os espelhos se reformaram e as maravilhas estão em vias de extinção.
. . . it is winter here . . . *
Este ano, o Inverno chegou mais cedo.
Não me ressinto desta sua invasão temporã. Aceito o seu torpor brando de fantasma sazonal, embrulhado naquela pele branca assustadiça, arrepanhada pelo negrume dos olhos. Uns olhos negros, tão negros como aqueles que por vezes trago.
De há uns dias para cá que o levo comigo, pela mão, como se fosse um filho temporariamente achado. Não me importo que os seus dedos encrespados me congelem a mão, deixando-a roxa no meio da rua. O Inverno não tem culpa de ser menino, não é por mal que se esquece do frio sobre os casacos e os telhados das casas. Não é por mal que me congela a mão.
Nas bermas e nos jardins, outros encontro que também passeiam o seu Inverno. Reconhecemo-nos uns nos outros pela mão roxa e pelos olhos negros, pelas pupilas dilatadas por um certo nada de melancolia a mais.
Este ano, o Inverno chegou tão cedo...
. . .
I thought if
I inventoried home it would be broad
my eyes fling open
like a doll´s
to the virtual space that suddenly
resembles the walls
the most interesting artists are large;
monsters
while the people we know are
masses of flowers
. . .
Eileen Myles, "Home", Sorry, Tree (Seattle/New York: Wave Books, 2007) 40.